quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Gosto da saudade

Toda semana, ao te despertar para fazer amor, sinto um hiato do tempo. Mal me dou conta da chegada do dia e das horas que escorrem pelas minhas costas e contornam meu corpo ainda tépido pelo calor de suas mãos. A saliva tão doce de nosso beijo bom me traz lembranças das tardes recheadas de quitutes da minha avó. Quando ela colocava na mesa com toalha rendada, o bolo quente ainda fumegando. Essa mesma fumaça de saudade que hoje me traz na boca um gosto meio-amargo. Não por acaso o chocolate que mais gosto, assim como gosto do café com pouco açúcar. Sou dada ao gosto meio-amargo meio-doce da saudade. Não acredito num cotidiano estimulante. Nada que se veja todo dia encanta. Nem o trabalho, nem a paisagem, nem a piscina no quintal de casa, nem o meu cachorro que faz festa todos os dias quando chego em casa como se tivesse vivido aquele dia inteiro à minha espera, assim como o dia anterior e o amanhã. Cada dia para ele é o mesmo diferente dia. Nem de mim me encanto todos os dias, tanto que preciso dormir para esquecer que existo por algumas horas. Por isso torna-se tão necessário sentir saudade do que poderei ser, como sinto a saudade de quando te reencontrarei. Pois quando te vejo enxergo partes de mim. Peças que havia deixado cair numa bifurcação quando peguei o outro caminho. E quando te sonho, o céu muda de cor: dia ou noite o céu fica âmbar. E toda cidade se cala. Permanecem apenas os movimentos frenéticos de uma cidade que se cala, mas não pára. Parada fico eu, suspensa numa realidade encantadora de sonhar com alguém. Mas o que me assusta, agora, é chegar a conclusão que prefiro muito mais ficar com o sonho real da saudade do que com a realidade sobrevivente da rotina... E que talvez essa seja a forma mais eficiente de amar.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Descobertas

A surpresa foi grande quando Ella notara que não mais o amava . Afinal foi o primeiro namorado, amor, homem. Todos os milhões de segundos que compartilharam de suas vidas e seus (di) sabores, os olhares de paixão e raiva, o frêmito que tomava o corpo em êxtase ou em cólera, a voz embargada e as gargalhadas, todos os dias e todo o sempre haviam abruptamente estacionado num local há muito proibido por sua consciência: no vazio. De repente tudo não significava mais nada... Não sabia mais o que a faria ficar em pé, quanto mais retomar os passos de sua própria vida. Qual a direção, a velocidade, o impulso que tomaria para chegar aonde nem sequer sabia...? Sabia que precisava fechar os olhos e encarar a escuridão que lhe habitava, sabia também que era extremamente necessário que abrisse as janelas e as portas para arejar seu interior e lavar o assoalho de sua identidade. Sabia que o tempo não esperaria a sua faxina da alma e ela tinha muita pressa de viver os segundos, desta vez só seus. Tinha pleno discernimento do exagero dos “recém-libertos” e do risco de ficar aprisionada a essa sede desvairada de viver.

Na vida pregressa estava sempre esperando que algo acontecesse. A diferença agora, pensava ela, estava na dinâmica de procurar e não na passividade de esperar. Estava decidida a procurar não sabia o quê, nem aonde caberia. O primeiro passo foi restaurar sua imagem desfocada, reencontrar-se com aquela do reflexo. O segundo e mais importante passo foi investigar-se meticulosamente, saber todos seus pormenores e maiores anseios, e finalmente, afogada em seu auto-querer, respirar o oxigênio de seu (re)conhecimento.

Passo-a-passo, cada vez mais, o novo rumo exalava a fragrância tentadora da liberdade. E a excitação de poder se redescobrir nos olhos de outro, de deslizar seu corpo em outras mãos, sentir o novo sabor da saliva, de se definir em palavras sussurradas por um timbre diferente, era algo que ecoava veemente no vácuo de suas indefinições. Enchendo-a de centelhas, como naquelas velinhas crepitantes de aniversário felizes. Ella virou um cronômetro das horas na contagem do tempo que demorava para reencontrar-se nele.

Mas, eis que nesse meio tempo, permitiu ser arrastada para as águas d'antes navegadas. O amor que julgava morto se regenerara tão de repentemente surpreendente como o notara ter se extinto.

Ella, então, estava novamente escamoteada à vida vivida e sem sentido que a fazia perturbadoramente segura. E inerte.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Avesso

Essa palavra me atrai com a madeira ao cupim. O avesso é lado de dentro, é o contrário, o escárnio. É a carne viva, é a morte, é o oposto, é o sexo. É exposição, é a víscera, é o que sinto. É simples. É o olho fechado que fita a alma e revira e revolve. É a inquietude que me tira a calma, o prumo.

Às vezes, os pensamentos me tiram o prazer de pensar, mas talvez sejam pensamentos com os quais não quero dançar. São apontadores de uma dor que teima em me vestir e talvez por isso me clame nua de preenchimentos. Por favor, escoe de mim os sentidos, por um instante, mas só por um instante! E então, desague novamente neste corpo sedento de torrentes de sentimentos. Estoure meu peito em duas metades, violente minhas lembranças de saudade. Pois, se não é isso que me faz valer a vida, o que me fará pulsar os olhos? O que me fará desvelar as nuances de viver cada dia tecendo a noite e a noite desfiando para um novo dia?

Escoo aqui as vertentes de pensamentos tanto turvos quanto límpidos. Povoo essa zona abissal com minhas cores, pois enquanto puder ver com meus olhos fechados, nunca o tempo irá apagar a pintura que colore minha parede de memórias e anseios. Reconstruo, neste momento, o sentido da época em que as palavras davam sons ou imagens à minha mente e faziam com que eu compartilhasse de modo perene a angústia e o júbilo de me virar do avesso.